quinta-feira, 23 de junho de 2011

UMA LEITURA DO ROMANCE "A JANGADA DE PEDRA" DE JOSÉ SARAMAGO



Devalcir LEONARDO[1]

José Saramago, escritor português, procura compreender a história de seu país, porém sob outra perspectiva histórica, apresentando nas suas obras, até a publicação de O Evangelho segundo Jesus Cristo, uma profunda análise da história portuguesa. Para tanto, reconta a história oficial abatendo os mitos de heróis e os de uma pátria suprema e gloriosa, valendo-se das categorias narrativas na construção dos seus romances. Prioriza a criação de personagens que se identificam com o povo simples e que ganham sentido e voz para refletir a coletividade. Esta nova técnica de narrar observada nas obras de Saramago despertou e tem despertado nos leitores um estranhamento, e por que não dizer uma certa dificuldade no entendimento das complexas alegorias presentes e uma linguagem inovadora  e irônica, que atribui um novo sentido à História de Portugal.
            No romance A Jangada de Pedra, objeto de nossa leitura, as personagens são constituídas de poderes sobrenaturais. A dona de casa Joana Carda é possuidora de uma vara de negrilho e com a qual poderia riscar o chão e traçar uma fronteira entre ela e o mundo. A partir desse risco, os cães que não tinham capacidade de latir passariam a fazê-lo. Outro personagem que se destaca é o farmacêutico espanhol Pedro Orce, que sente a terra tremer sem que os sismógrafos pudessem registrar algum acontecimento. O professor de português das “primeiras letras” José Anaiço que passou a ser seguido, misteriosamente, por um bando de pássaros; Joaquim Sassa, empregado de um escritório, que em férias, lança ao mar uma pesada pedra que começa a subir e a descer sobre a água até mergulhar definidamente. Completa essa galeria Maria Guavaira, uma senhora viúva e proprietária rural, desfiando uma meia de lã, cujo fio nunca chega ao final e a presença de um imenso e mudo cão que tem um pedaço desse fio de lã caindo de sua boca.
            Todos esses personagens e acontecimentos constituem-se uma grande alegoria na compreensão e desenvolvimento da misteriosa ruptura dos Pirineus, que levou a Península Ibérica (Portugal e Espanha) à deriva pelo Oceano Atlântico, imaginando-a uma grande jangada de pedra sem rumo e sem identidade.
            Saramago apresenta em A Jangada de Pedra um discurso irônico, revestido de alegoria, será a base de esse outro olhar, apresentando uma Europa acéfala, quando a Península Ibérica se soltou do continente europeu. Vejamos o fragmento que confirma a nossa leitura:


Então, a Península Ibérica moveu-se um pouco mais, um metro, dois metros, a experimentar as forças [...]. Houve depois uma pausa, sentiu-se passar nos ares um grande sopro, como a primeira respiração profunda de quem acorda, e a massa de pedra e terra, coberta de cidades, aldeias, rios, bosques, fábricas, matos bravios, campos cultivados, com a sua gente e os seus animais, começou a mover-se, a barca que se afasta do porto e aponta ao mar outra vez desconhecido (SARAMAGO, 2002, p. 43).


O narrador de A Jangada de Pedra reflete com pessimismo sobre o futuro da Península Ibérica, no momento em que os quatros viajantes retornam para suas casas, cansados de tanto vagar pelo seu país, sem um porto seguro. Descreve, no final do livro, as incertezas do futuro:

A península parou [...]. A viagem continua. Roque Lozano ficará em Zufre, irá bater à porta de sua casa, Voltei, e a sua história,  alguém há-de querer contá-la um dia. Os homens e as mulheres, estes, seguirão o seu caminho, de futuro, que tempo, que destino. A vara de negrilho está verde, talvez floresça no ano que vem (SARAMAGO, 2002, p. 317).

               
            Terminada a história sob a visão pessimista do narrador, mas que antevê uma possibilidade de esperança, ao referir-se à vara de negrilho: A vara de negrilho está verde, talvez floresça no ano que vem, ou seja, a vara de negrilho florescendo, possivelmente a quantidade de varas aumentará, o povo poderá riscar o chão e começar tudo novamente. Vale ressaltar que a simbologia de riscar o chão marca o rompimento do Pirineus. Ao concluir, alerta que o destino da Península Ibérica dependerá de seu povo.
A esperança que surge com a vara de negrilho e o nascimento de uma nova geração, pois em certa altura da narrativa de A Jangada de Pedra todas as mulheres que estavam em condição de física ficam grávidas, revelando mais uma alegoria do romance, neste caso, tanto em Portugal como em Espanha teriam como herói o seu próprio povo, superando o individualismo e reforçando os laços de solidariedade da entre os povos.
A história portuguesa é constituída a partir de vários mitos, o mais marcante é o mito do sebastianismo (Dom Sebastião foi um rei jovem que morreu lutando nas cruzadas, seu corpo nunca foi encontrado, o povo português sempre esperava sua volta, para restaurar o poder de Portugal diante do mundo) em  A Jangada de Pedra, a função do sebastianismo se caracteriza pela busca da identidade da nação e pelo resgate da soberania, uma vez que o narrador apresenta uma crítica contundente ao governo português,  na visão de Saramago, os governos só apresentam eficácia e lideranças, no momento em que todas as suas capacidades de governar não são exigidas. Configura-se no trecho:

A notícia de que a península se precipita à velocidade de dois quilometras por hora em direção aos Açores foi aproveitada pelo governo português para apresentar a demissão, com fundamento na evidente gravidade da conjuntura e no perigo colectivo iminente, o que permite pensar que os governos s só são capazes e eficazes nos momentos em que não haja razões fortes para exigir tudo da sua capacidade (SARAMAGO, 1982, p. 2000).


            Para entendermos toda a alegoria criada pelos autores, faz-se necessário ter conhecimento de Portugal e da Espanha, submetidos à União Européia. Segundo Walter Praxedes, seu estudo, Saramago critica duramente este tipo  de organização que exclui os países pobres. Esclarece-nos o autor:

 Se os heróis dos romances de Saramago são os excluídos da História, Portugal e a Península Ibérica foram igualmente excluídos da História européia, que foi durante muito tempo a História e ponto final, pelo menos para o etnocentrismo europeu (RIVAS, 1998, apud PRAXESDES, 2001, 74)


No romance A Jangada de Pedra o discurso irônico apresenta um crítica social constante, consubstanciada nos personagens, que também apresentam uma matriz do sebastianismo, mas para Saramago, as mudanças virão, a partir da organização popular. Trata-se da identidade construída com base sólida na solidariedade, no respeito às diferenças e nas esperanças imorredoura de que o destino de um povo depende do próprio povo.

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS

PRAXEDES, W. L. A Elucidação pedagógica, história e identidade nos romances de José Saramago. 2001. Tese (Doutorado)–Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.  

SARAMAGO, José. A Jangada de Pedra. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1999.



[1] Mestre em Letras: estudos literários, artigo adaptado para uma preparação para o vestibular da Fecilcam 2011.  

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